sábado, 23 de outubro de 2010

Um reinado de 70 anos

Com a voz suave e pausada, dona Neli vem se desdobrando nos últimos dias para agradecer – e declinar – quem lhe telefona em busca de uma entrevista com o chefe. Na mesa do escritório, estão anotados mais de 238 telefonemas (entre eles o do presidente de Israel, Shimon Peres, e do prefeito de Nova York, Michael Bloomberg), que gostariam de homenagear o chefe de dona Neli neste sábado 23, quando ele completa 70 anos.

“Tem pedido de entrevista do Japão, da França, de Hong Kong e até dos Estados Unidos, onde o futebol masculino nem é tão forte assim”, diz Neli Cruz, que, há 10 anos, é a secretária particular de Edson Arantes do Nascimento.

Já faz mais de 30 anos que Pelé pendurou as chuteiras e neste período o mundo viu surgir novos craques do futebol: dos franceses Michel Platini e Zinedine Zidane ao argentino Diego Armando Maradona, passando por Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, mas nenhum deles alcançou o patamar do eterno camisa 10 do Santos.

Pelé não foi apenas uma máquina de fazer gols. Foram 1.284 no total, sendo 95 só com a camisa da Seleção Brasileira. Ao longo da vida, o Rei do Futebol associou sua imagem a uma centena de produtos e fez de si próprio uma das marcas mais valiosas do mundo.

O mercado publicitário e os especialistas nesse tipo de avaliação dizem que quem quiser explorar a marca Pelé por 20 anos terá de desembolsar nada menos que R$600 milhões. Detalhe: isso depois de 33 anos de aposentadoria do craque.

Ao longo da vida, o ex-jogador já emprestou sua imagem para mais de uma centena de marcas e produtos. Vendeu de tapetes a refrigerantes. De aparelhos de tevê a remédio para disfunção erétil. E até hoje Pelé ilustra campanhas publicitárias, participa de eventos e dá palestras. Só com esse tipo de atividade, o empresário Edson Arantes do Nascimento fatura R$30 milhões por ano.

Pelé não faz propaganda por menos de R$2 milhões. Neste cachê estão incluídos 2 dias de filmagens e fotografias para 6 meses de veiculação. Se a empresa quiser tê-lo em algum evento ou que ele participe de palestras, há um adicional de 10% sobre o valor total da campanha publicitária.

O que explica tamanho apelo publicitário tanto tempo depois de o craque ter deixado os gramados?

Simples. Ele está num patamar em que nenhum outro esportista está. Sua marca está acima do bem e do mal e o que explica é o fato de ele ter construído mais coisas boas do que ruins na carreira.

Se Pelé foi uma unanimidade dentro de campo, não se pode dizer o mesmo de Edson Arantes do Nascimento. Ele se envolveu em algumas confusões que, fosse outra sua trajetória, poderiam ter minado sua imagem. Quando seu filho Edinho foi preso sob acusação de envolvimento com tráfico de drogas, o próprio Pelé disse que foi um pai ausente.

Nas ruas, porém, o que se ouvia eram frases de solidariedade ao sofrimento do pai que descobre o filho viciado. Pelé também se recusou a reconhecer a paternidade de Sandra Regina Machado, fruto de um romance na década de 60. O caso ganhou as manchetes dos jornais e, por anos, Pelé se negou a dar o sobrenome a Sandra.

A moça morreu em 2006 e Pelé nem sequer foi ao funeral. Ele sabe usar todos os recursos da mídia para se manter em evidência e o fato de referir-se a si mesmo na terceira pessoa, cria uma barreira natural entre o homem e o mito. Num país com carência de ídolos, Pelé vai se safando das confusões de Edson Arantes do Nascimento como se não fosse com ele.

Contratado pela Mastercard desde 2004 para participar de eventos, Pelé nunca tinha estrelado uma campanha publicitária para a marca. No início deste ano, porém, foi a principal estrela de uma propaganda da empresa. No filme, um rapaz tira foto do ídolo e leva para o pai completar um álbum de figurinhas. A Mastercard passou meses pensando em quem poderia fazer o papel de ídolo. Foi o então chefe do marketing global da marca, Laurence Flanagan, quem sugeriu: por que não Pelé? Precisou um americano, que não entende nada de futebol, falar o óbvio.

Poucas empresas que utilizam o craque como garoto-propaganda o fazem na intenção de aumentar as vendas, segundo elas mesmas explicam. Elas estão em busca dos atributos que ele tem como personalidade mundialmente reconhecida.

E ele não vê nenhuma contradição entre usar um senhor de 70 anos em campanhas de um segmento tecnologicamente avançado como o de telefonia celular. Pelé tem 70 anos, mas não se pode dizer que ele não seja moderno.

No início do ano, a Vivo produziu um vídeo no qual o último gol do craque é marcado com a camisa da Seleção Brasileira. Resultado: o filme teve mais de 2 milhões de page views na internet em poucas semanas.

Pelé é um exemplo de atleta, é um cara muito simples e sincero. O índice de rejeição a ele é um dos menores do mundo entre as pessoas famosas. Ele hoje não é apenas um esportista. É avaliado na categoria das celebridades e, por conta disso, pode-se associá-lo a qualquer produto, de qualquer marca, de qualquer setor.

Para profissionais de marketing, Pelé reúne as qualidades que toda marca quer ter. “Pelé é único”, dizem os consumidores. E é isso que a Vivo vai buscar para se diferenciar em um mercado em que tem concorrentes ferozes do calibre de uma Oi ou de uma TIM.

Dona Neli diz que Pelé vai comemorar os 70 anos só com a família, em Santos, onde construiu sua sólida carreira. Uma solidez que vem de longa data. Em 1969, Pelé excursionava com o Santos pela África e parou uma guerra civil que acontecia no Congo. As duas forças rivais anunciaram o cessar fogo enquanto o rei do futebol estivesse por lá. Não é para qualquer um, entende?

1. Ninguém marcou tantos gols
11 vezes artilheiro do Campeonato Paulista, das quais 9 consecutivas. Capaz de marcar 111 gols na temporada de 1961 (tinha 20 anos e média de 1,48 gol por jogo) ou de chegar a 58 gols no Campeonato Paulista de 1958. Do primeiro, contra o Corinthians de Santo André, em 1956, ao último, num amistoso Seleção do Sudeste x Seleção do Sul, em 1983, foram 1284 gols.

2. Ninguém foi tão completo
Ele driblava curto, ganhava na velocidade dos adversários, tabelava com as canelas dos marcadores para receber na frente. Chutava forte ou colocado, o que fosse o caso. Era habilidoso e oportunista. Seu equilíbrio perfeito levava ao desespero os que tentavam derrubá-lo. Pelé pulava alto e aprendera com o pai, seu Dondinho, o valor de cabecear com os olhos abertos.

3. Ninguém conquistou mais títulos
Em 21 anos de carreira, Pelé levantou todo tipo de taça. Foi campeão do Torneio Doutor Mario Echandi, na Costa Rica, em 1959. Venceu o Torneio da Amazônia, em 1968, e 2 anos depois comandava o Santos na vitoriosa campanha do Torneio Internacional de Kingston, Jamaica. Houve, é claro, glórias incomensuráveis. Já em 1958, aos 17 anos, era campeão do mundo, título que repetiria em 1962 e 1970. Um tricampeonato no campo que até hoje ninguém igualou. No mesmo ano de 1958, ele iniciou a sua coleção de 10 títulos paulistas (venceu em 1958/60/61/62/64/65/67/68/69/73). Com Pelé em campo, o Santos tornou-se o primeiro time brasileiro a conquistar a Taça Libertadores e foi logo sendo bicampeão, em 1962 e 1963. No embalo, também levou o bi-Mundial Interclubes nos mesmos anos.

4. Ninguém encantou mais
Adversários, pessoas indiferentes ao esporte mais popular do planeta, qualquer um. O magnetismo irradiado por Pelé, desde a década de 50, não poupou ninguém. Por onde passou, Pelé encantou. Todos os presidentes americanos, de Richard Nixon a Bill Clinton, quiseram apertar a mão do Rei. 2 papas (Paulo VI e João Paulo II) escancararam as portas do Vaticano para recebê-lo. A rainha Elizabeth 2ª, da Inglaterra, sempre seríssima, chegou a arriscar uma graça ao pedir que ele jogasse em seu time de coração, o Liverpool.

5. Ninguém reinou por tanto tempo
Começou em 29 de junho de 1958, apesar de alguns historiadores preferirem o dia 19 do mesmo mês, quando ele marcou o gol da sofrida vitória brasileira sobre País de Gales. Mas foram os 2 gols na final de Copa do Mundo jogando contra os suecos, donos da casa, que deram início ao reinado. Daí em diante, Pelé seria o maior de todos, o pérola negra ou, simplesmente, o rei. Ele atravessou 3 décadas em evidência.

6. Ninguém foi mais profissional
Era apenas uma homenagem. No dia 23 de outubro de 1990, Pelé completava 50 anos e a Seleção Brasileira faria, em Roma, um amistoso contra um combinado do resto do mundo. Ele entraria em campo, jogaria alguns minutos e pronto. Mas Pelé levou a sério. Um mês antes do jogo, iniciou um programa de recondicionamento físico que incluía corridas, musculação e durava 4 horas diárias. Ele perdeu rápido os 6 quilos que o separavam dos 75 ideais. O episódio dá a exata dimensão do profissionalismo de alguém que jamais se contentou em ser o mito. Pelé sabia como poucos que era preciso lustrar a coroa para ela nunca perder o brilho.

7. Ninguém perdeu gols tão lindos
Pode alguém se orgulhar das mulheres que nunca conquistou ou do dinheiro que não ganhou? Pois Pelé pode e deve ter orgulho de 3 gols que não fez na Copa de 1970. Primeiro, a petulância. Ele pegou a bola no meio de campo, viu que o goleiro Victor, da Tchecoslováquia, estava adiantado e chutou. Depois, a perfeição. O cruzamento de Carlos Alberto foi alto, talvez perfeito para um grandalhão qualquer. Mas Pelé, que não era grande, saltou muito e, de olhos abertos, decidiu o que fazer. A cabeçada saiu forte como um chute, no chão, no canto direito. Indefensável, se o goleiro não fosse o inglês Banks, que se jogou na bola e processou um milagre. Por fim, o abuso. Tostão deixou Pelé frente a frente com o goleiro uruguaio Mazurkiewicz. Os apavorados chutariam de primeira. Os mais calmos fariam o drible convencional. Ele driblou com os olhos e com o corpo, nada de tocar a bola, só dissimulação. Pelé deixou a bola passar por um lado e foi buscá-la no outro. Mazurkiewicz, rendido, viu Pelé chutar no contrapé do zagueiro que tentava evitar o gol. O chute, mesmo divino, foi para fora.

8. Ninguém foi tão campeão pela Seleção
Pelé acumulou o mais impressionante currículo entre todos os quase 900 jogadores que já vestiram a camisa amarela. Ninguém fez tantos gols. Foram 95 contra "meros" 67 de Zico, o segundo colocado. Houve quem defendesse mais vezes o Brasil. O lateral Djalma Santos (com 122 partidas) e o meia Rivelino (com 121) estão à frente de Pelé, que disputou 114 jogos. Em compensação, alguém mais disputou quatro Copas (1958/62/66/70) e fez gols em todas? Para ser exato, 12 gols. Se não fosse por esses números, outro já bastaria para eternizar o seu nome na seleção: 3 títulos mundiais.

9. Ninguém foi mais atleta
Ele jogava 60, 70 partidas por ano. Nas turnês do Santos, era jogo dia sim e dia não. Apanhava feito cachorro dos becões que tentavam cancelar o show de Pelé. Foram 20 anos de maratona, correndo, driblando, sendo a referência do Santos, da Seleção Brasileira e do Cosmos. Pelé não podia se esconder em campo, tomar um ar, deixar que seus companheiros decidissem a parada. Era correria para fazer seus gols e escapar das botinadas adversárias. "Tenho certeza de que, bem treinado, Pelé seria um dos dez maiores do mundo em decatlo", dizia seu preparador físico da época, Júlio Mazzei.

10. Ninguém foi tão precoce
Hoje, com tanta gente louca atrás de uma boa promessa (de futebol e de dinheiro), há quem pague US$3 milhões por um garoto de 15 anos, como faz, recentemente, inúmeros clubes europeus. Mas, em 1956, era espantoso ver um menino dessa idade assinar contrato profissional com o atual bicampeão estadual. Essa foi só a primeira surpresa do documento datado de 8 de junho. 3 meses depois, no feriado de 7 de setembro, ele estreou contra o Corinthians, de Santo André. E aos 15 anos, 10 meses e 14 dias, fez o primeiro gol pelo Santos. Como Pelé foi bom demais desde o começo, não levou nem um ano para chegar à Seleção.

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