Em alguma cidade grande do Brasil...
Um dedicado gari voltava para casa, depois de uma longa e árdua jornada de trabalho.
Aquele dia, em particular, sentia o coração pesado. Ao término do expediente, ao livrar-se com dificuldade do odor e do aspecto que o seu esforço em deixar a cidade mais limpa havia impregnado em sua roupa e em sua pele, mas não em sua alma, passara em frente a uma padaria.
Precisava, como sempre, pegar as poucas moedas do bolso para garantir o pão para os 3 filhos que, apesar da chuva daquele dia, o receberiam felizes e de braços abertos. Apesar da certa melancolia que acinzentava o seu coração, aquele trabalhador urbano sabia que em sua casa simples ele era amado, respeitado e querido.
Chovia, como sempre chove em dezembro. O trânsito era implacável. O lixo das grandes lojas, dos hipermercados e das festas de fim de ano mais uma vez entupiam os esgostos.
"Os dias seguintes seriam de muito trabalho", pensou o homem, entre dissabores e buzinas.
Lembrou-se da passagem na padaria. O pedido ao balconista. A espera de sempre. Uma olhada breve no aparelho de TV sobre cabeças e massas. Um âncora de um jornal da TV. Um microfone. A era digital. Um Brasil escondido atrás da porta.
"Que merda, 2 lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras."
E o Brasil do ar-condicionado quis se confessar ainda mais.
"O mais baixo da escala do trabalho."
O gari nada diz.
Afinal, o que acabara de ouvir traduzia os olhares de aversão que experimentava todos os dias, nas alamedas dos prédios e condomínios de luxo aos quais tinha a missão de manter limpos e asseados.
Desta vez, em vez do olhar, uma voz.
Recolhe o pão de cada dia em meio à indiferença geral e volta pra casa. O afeto da família alivia o seu coração, afinal é época de ano novo e por conseqüência, planos e sonhos novos.
Após o jantar simples, o menino caçula senta-se no colo do pai e, ingenuamente, proclama:
- Pai, quando eu crescer eu quero ser jornalista de TV e dar notícias pra todo mundo!
- É mesmo, meu filho?
- É sim, pai. Acho bonito falar as coisas para as pessoas na televisão...
O pai afaga o filho de olhar simplório, pensa por alguns segundos e prossegue:
- Vá em frente, meu filho. É uma profissão nobre. No que o pai puder, eu te ajudarei. Mas tem que estudar bastante, senão você não consegue.
- Você vai ver, pai. Eu vou ser muito bom!
- Acredito em você, filho. Mas lembre-se de uma coisa: seja o que você é tanto na frente como atrás das câmeras.
- Mas... dá pra ser diferente, pai?
- Sim, filho. Vai depender se você quiser usar bem o que diz ou se o seu caráter vai fazer de você um escravo de suas próprias mentiras. Com ou sem um microfone na mão.
- Tá, pai. E qual o melhor caminho?
- No dia que você pegar o microfone para dar a sua primeira notícia, fale com o público com a mesma sinceridade do abraço que você me dá, quando eu chego em casa depois do trabalho. E depois que o seu expediente acabar, lembre-se sempre de onde você veio.
- Então vai ser fácil. Falar para as pessoas do mesmo jeito que eu te dou um abraço. Entendi: o que eu aprender em casa, mostrar no serviço. Certo, pai?
- Isso. E além disso, estudar muito.
- Tá bom. Pode deixar. Obrigado, pai.
O menino foi para seu quarto se esforçando em memorizar as palavras do pai.
O gari se deitou e virou para dormir o máximo que a sua exaustão lhe permitiria.
Tinha uma metrópole para deixar mais limpa na manhã seguinte...
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
Fábula urbana: o menino sonhador e o pai gari
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putzgrillo marcelo
ResponderExcluirque vontade de ter dito isso.
a sua, a minha e a de muitos por aí, Codorna!
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