O ano de 2010 é especial por uma coincidência feliz de datas redondas de grandes ídolos nacionais. Este ano é o centenário de nascimento dos sambistas Adoniran Barbosa e Noel Rosa. Mesma idade que faria a escritora Rachel de Queiroz, que escreveu belas páginas na história da literatura brasileira. O grande gênio da televisão brasileira, Silvio Santos, vai fazer 80 anos de vida. Há 70 anos chegava para reinar no mundo a majestade Pelé.
E um dos maiores mitos da história do esporte mundial completaria 50 anos no dia 21 de março: o brasileiro Ayrton Senna da Silva. Metade de tempo que o seu clube de coração, o Corinthians. Mesmo para quem não gosta de automobilismo, o tricampeão do mundo é um ídolo. Supera qualquer época ou gosto particular. Poucas personalidades foram tão amadas e idolatradas por uma legião tão grande de torcedores quanto Senna. Poucos atletas elevaram o ufanismo na medida em que o piloto do capacete amarelo foi capaz.
O aniversário de 50 anos de nascimento do tricampeão não vai passar em branco. Ainda hoje, as muitas homenagens ao eterno ídolo são impressionantes para alguém que faleceu a mais de 15 anos. Na internet, por exemplo, são inúmeros os sites, comunidades e afins dedicadas à memória de Senna. A comoção é tão grande por quem é seu fã, que vira e mexe lemos frase meio bregas do tipo: “Ele ainda corre em nossos corações” ou “Saudades eternas”.
É difícil explicar tanta idolatria. Sua morte precoce torna ainda mais mítica a sua história. Porém, simplesmente essa explicação é muito tola para quem foi tão celebrizado em vida. Além da genialidade como esportista, da carreira vitoriosa, do enorme carisma, a época em que Senna brilhou o tornou único. No final dos anos 80 e início dos 90, o Brasil vivia um gigantesco caos econômico, administrativo e político. Hiperinflação, corrupção, impeachment e escândalos de todas as ordens dominavam o noticiário.
No esporte, a fase era igualmente ruim. A seleção brasileira vivia uma das piores fases de sua história. Sócrates, Zico, Dinamite, Falcão e outros craques encerraram suas brilhantes carreiras. Os grandes jogadores brasileiros estavam no exterior – Romário, Bebeto e Careca. Na F1, Nelson Piquet e Émerson Fittipaldi estavam no fim das geniais trajetórias esportivas. No basquete, Oscar, Hortência e Magic Paula eram dos poucos ídolos nacionais. O vôlei ainda era um esporte pouco popular. As outras modalidades despertavam pouco interesse do público.
Ídolo mesmo, com todos os adjetivos que compõe uma estrela, só mesmo Ayrton Senna. De fato, o piloto era um dos poucos acalantos para os brasileiros numa época tão difícil em todos os setores. Na falta de futebol da seleção e na ausência de campeonatos atrativos, as alegrias no esporte eram somente nas manhãs de domingo com a torcida pelo piloto brasileiro.
A imagem cultivada por Senna também contribuiu para a mitificação. Ele era extremamente obcecado por ser o melhor. "Vencer é como uma droga. Eu não posso justificar, sob nenhuma circunstância, ser o segundo ou terceiro", afirmava. Também não desistia nunca dos próprios objetivos: "O impossível não existe quando se acredita verdadeiramente nos sonhos", sempre aconselhava.
O enorme orgulho (sem hipocrisia) de ser brasileiro era outro ponto a favor do piloto. O capacete com as cores do país e a bandeira levantada a cada vitória foram as suas marcas registradas. Senna era a personificação do “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”, campanha do Governo Federal famosa anos mais tarde.
Além disso, tinha uma boa imagem como homem. Era uma pessoa preocupada com as crianças pobres, antes de isso virar instrumento de marketing. Por uma grande infelicidade, morreu pouco tempo antes de realizar o sonho de fundar sua própria entidade beneficente. Hoje, a idéia do piloto, o Instituto Ayrton Senna, já atendeu quase 12 milhões de pessoas e é conduzida por sua irmã, Viviane Senna, uma mulher tão admirável quando fora seu ente famoso.
Ayrton Senna teve uma carreira relativamente curta, mas o suficiente para colocá-lo entre, pelo menos, os 3 maiores pilotos da história da F1: tricampeão do mundo (1988, 1990 e 1991) e vice em 1989 e 1993. 3º piloto com maior número de vitórias e de pódios. 2º em quantidade de pole-positions. Dono dos 3 maiores recordes de poles consecutivas. 3º maior em pontos conquistados. 8º em número de voltas mais rápidas.
Todo o gênio deixa um grande legado para as gerações posteriores. E Senna foi um dos primeiros pilotos a se preocupar com a forma física. A era dos corredores gordinhos ficou para trás depois que o brasileiro passou a treinar com o professor Nuno Cobra. Determinado e obcecado por resultados, Senna mantinha uma rotina de preparação física invejável até para atletas de esportes mais intensos.
Este fator fez a diferença na histórica vitória no GP do Brasil de 1991, quando perdeu cinco das seis marchas do seu carro nas últimas voltas da corrida. No braço, Senna segurou a McLaren na ponta até a bandeirada da vitória. Foi algo tão esgotante fisicamente, que ele precisou de ajuda para sair do carro e mal teve forças para levantar a taça no pódio.
O mínimo que podia se esperar de um piloto deste nível era que pudesse correr na principal categoria do automobilismo pelo menos até os 40 anos – Senna morreu aos 34. O brasileiro vivia tão intensamente o mundo da velocidade que é quase impossível imaginá-lo aposentado. Aos 50 anos, hoje ele com certeza estaria disputando algum campeonato, talvez uma competição de turismo europeu ou a brasileira Stock Car.
Aquele fim de semana em Ímola foi o mais trágico da história da F1. O então jovem Rubens Barrichello, amigo e protegido de Senna, sofreu um gravíssimo acidente nos treinos de sexta-feira. O estreante austríaco Roland Ratzenberger morreu no sábado, um dia antes de Ayrton.
Senna era um dos pilotos da F1 mais preocupados com a segurança das pistas. Pouco depois da primeira morte em Ímola, o tricampeão reuniu todos os corredores para tentar recriar a ‘Comissão de Segurança de Pilotos’ e se ofereceu para ser o líder do grupo. Chegou até a cogitar o cancelamento da corrida que seria fatal para ele mesmo, mas acabou concordando em correr, juntamente com os companheiros de pista.
Após a tragédia que o matou, algumas declarações e atitudes que Senna teve antes do acidente deixam todos intrigados. A imagem mais marcante é o olhar profundo, perdido e enigmático do tricampeão pouco antes de entrar pela última vez num carro de F1. Ele ainda disse pouco antes da corrida: “Não existe acidentes pequenos nesta pista”.
Antes do campeonato de 1994 começar, Senna afirmou: "Esta será uma temporada com muitos acidentes, e eu arrisco dizer que teremos sorte se nada sério acontecer". Mas a declaração que tenha sido mais chocante ao lermos após a morte do piloto foi uma dita apenas quatro meses antes: "Se eu tiver que sofrer um acidente que eventualmente custe minha vida, eu espero que seja de uma vez. Eu não quero ficar numa cadeira de rodas. Não quero ficar num hospital sofrendo com os ferimentos. Se eu tiver que viver, eu quero viver plenamente, intensamente, porque eu sou uma pessoa intensa. Eu arruinaria minha vida se tivesse que viver parcialmente". São declarações e preocupações que acabariam esquecidas se nada tivesse acontecido no GP de Ímola. Porém, é algo que não deixa de ser intrigante.
A tragédia na curva Tamburello, em Ímola, interrompeu a brilhante carreira daquele que, na época, já era visto por muitos especialistas como o maior piloto de todos os tempos – o argentino pentacampeão do mundo Juan Manoel Fangio era o seu maior rival no quesito história.
Em 1994, Senna estreava na insuperável Williams, do igualmente genial projetista Adrian Newey. Naqueles meados dos anos 90, ninguém era capaz de bater a equipe inglesa. Após a tragédia com o brasileiro, o limitado inglês Damon Hill assumiu a posição de primeiro piloto da escuderia.
Hill foi duas vezes vice-campeão, em 1994 e 1995, e campeão em 1996. Currículo respeitado, mas pouco para quem tinha um carro tão claramente superior. Mesmo considerando que o seu adversário direto era o já genial Michael Schumacher, o inglês perdeu dois títulos por ser bem mais limitado que pilotos anteriores da Williams – Nelson Piquet, Nigel Mansell e Alan Prost.
Não é nenhum absurdo imaginar que um gênio como Senna ganharia os quatro mundiais seguintes a bordo de uma máquina tão vitoriosa como a Williams dos anos 90. Pelo menos os títulos de 1996 e 1997 certamente seriam dele, pois o único adversário com capacidade para batê-lo – Schumacher – estava ainda na fase de construção da poderosa Ferrari da década seguinte.
O mundo gira e, muitas vezes, teima em repetir a história. Caso semelhante a Senna ocorreu com o escocês bicampeão Jim Clark. Em 1968, o piloto já detinha vários recordes da F1 e partia tranqüilo para a conquista do tricampeonato com a superior equipe Lotus. Porém, numa corrida que participava na extinta Fórmula 2, Clark morreu após seu carro sair da pista e bater forte em algumas árvores. E quem ‘herdou’ o título quase ganho de Clark? Seu companheiro de equipe, Graham Hill, pai de Damon.
Até hoje, Jim Clark é o 6º piloto com maior número de vitórias na F1. O 3º em quantidade de pole-positions. O 5º nas voltas mais rápidas. O 2º em hat-tricks (pole-position, vitória e melhor volta numa mesma corrida). E ainda tem o recorde de grand-chelem (largando da pole e completando a corrida inteira na primeira posição). Clark e Senna perderam a chance de serem os maiores de todos os tempos, em números.
Aliás, é até significativo o alemão Michael Schumacher ter vencido o trágico GP de Ímola e sido campeão nos dois anos seguintes da morte de Senna. Foi praticamente ‘a passagem de bastão’ de um mito para outro. A F1 perdeu este grande duelo – sem dúvida, seria o maior da história – e Senna perdeu a chance do penta ou até mesmo do então inédito heptacampeonato.
De fato, muitas vezes, o destino é um grande ingrato. Com Senna, infelizmente, essa constatação ficou explícita.
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