domingo, 20 de abril de 2014

A voz de um gênio que se cala



Se você nasceu entre 1970 e 1990 e gosta de esportes de uma forma geral, muito provavelmente deve isso a Luciano do Valle. Foi graças ao "Show do Esporte'', nos domingos da TV Bandeirantes, que foi cunhada boa parte da atual geração da indústria do esporte no Brasil.

Além do espetacular narrador que foi, Luciano foi o maior empreendedor do esporte brasileiro. O boom de popularização que existiu no esporte nos anos 80 se deve a ele. Um cara que teve a visão da importância da mídia na massificação do esporte.

Que colocou sinuca ao vivo nos domingos, que trouxe NBA e NFL para cá antes mesmo dessas ligas montarem uma estratégia de internacionalização, que promovia grandes encontros do esporte nos seus "Verão Vivo" e "Inverno Quente'', que fez existir o vôlei no país, que deu novo salto ao basquete, que popularizou as mesas redondas, que deu à Band, por diversas vezes, a liderança na transmissão esportiva.

Graças a Luciano, conseguimos ter o mínimo de cultura esportiva além do futebol. Gênio com o microfone na mão, ele foi ainda mais visionário no que se referia à relação da mídia com o esporte. Com uma brutal diferença: o modelo criado por ele era completamente rentável para o esporte, para os patrocinadores, para a emissora que exibia os eventos e para os profissionais de mídia que lá trabalhavam.

Mais do que o fôlego afiadíssimo para gritar gols, pontos, cestas, nocautes, recordes, vitórias, Luciano era o cara que permitia fazer existir toda uma indústria de marketing esportivo no Brasil quando isso ainda era chamado de "promoção''.

O futebol, entretanto, era sua paixão. O gol para ele era um momento tão intenso quanto fugaz. Uma explosão que não machucava, nem causava ferimentos, nem dilacerava ninguém. Trazia consigo um grito inopinado que saltava um obstáculo que parecia intransponível.

A bola carrega em si mesma, em sua esfericidade, o dilema de abrir as comportas da alegria. De se infiltrar entre pernas, braços, corpos transpirando atravessados no caminho. Driblar os esquemas e as táticas, derrubar os adversários, ultrapassar a linha tão lépida quanto possível. E adormecer, por vezes, aninhada e satisfeita, num canto da rede. Ou de, entusiasmada pela força de quem a remeteu, estufar aquela teia que acolhe todos os momentos únicos de uma partida. O gol tem essa dimensão poética encravada na garganta de quem vibra. O gol traduz a emoção de quem carrega bandeiras escondidas dentro de si mesmo. O gol representa o ato que começa e termina ao transcender o lampejo de uma vitória possível mas ainda improvável, porém acena com a perspectiva de um degrau conquistado.

Sim, o gol seria tudo isso e muito mais.

Mas nunca mais será o mesmo, não terá a mesma entonação, nem a mesma profundidade, nem a lágrima da euforia transmitida nos torcedores que desconhecidos se abraçam ou a sutura da tristeza de quem sofreu um gol na carne e na derrota, como se fosse um abalo sísmico a detonar sua esperança.

Sim, o gol teria muitas cores e camisetas e bandeiras.

Mas nunca mais será o mesmo.

Pois o intérprete mais vigoroso e pungente, o mais próximo da sublimação, se calou.

Luciano, a voz do gol de todas as torcidas, concluiu sua partida derradeira.

O esporte perdeu Luciano do Valle. E precisa de novos Lucianos para conseguir voltar a ser grande.